Parece haver uma diferença entre o texto literário e o cinematográfico: o texto literário sempre é relido, a crítica literária se faz por constantes releituras e leituras de releituras. A análise cinematográfica, por sua vez, muitas vezes fica restrita a um mero comentário jornalístico e informativo de entretenimento.
Talvez a escassez de
análises mais cuidadosas, restritas por vezes ao meio acadêmico, esvazie a
percepção de que o filme tem a mesma necessidade de ser visto várias vezes, de
ser analisado e estudado. Não é que não haja releituras de filmes, elas apenas
não são consideradas tão necessárias como na literatura:
Se a afirmação de
Pauline Kael, de que jamais assistiria a um filme pela segunda vez antes de ter
escrito algo sobre ele, houvesse sido feita por um crítico literário com
respeito a Hamlet ou Ulisses, teria sido tomada como um sinal de preguiça ou
incompetência. (STAM, 2003, Introdução à Teoria do Cinema, p. 209).
Está em curso, contudo, uma
mudança nos hábitos de consumo que favorecem também à mudança de hábito junto
aos filmes e às suas releituras. Se antes o espectador ficava restrito à
projeção no cinema e ao seu tempo de exibição, o DVD surge hoje como uma facilidade
para o analista.
Não se pode esquecer,
todavia, que são experiências distintas, o cinema e a televisão, e que somente
essa diferença já cria uma interferência relevante na maneira como o espectador
se relaciona com o filme, como se verá posteriormente.
Para aprofundar a noção de
texto no cinema, é importante fazer uma decupagem no próprio ato fílmico, em um
sentido amplo, para buscar onde se encontram intertextos e extratextos que
permeariam o filme acrescentando novos sentidos ao seu texto.
Podem-se buscar essas
variáveis em três espaços: no conteúdo do texto, ou seja, na própria narrativa
que o filme apresenta; nas marcas de produção do filme que envolve o fazer
cinematográfico, desde a pré-produção até as estratégias de distribuição e marketing e, por fim, nos modos de
recepção a partir da distinção dos dispositivos de exibição fílmica. Esses
espaços se complementam à própria experiência do espectador que é quem dá
sentido à pluralidade de textos, segundo Barthes:
Sabe-se agora que o
texto não é uma sequencia de palavras liberando um único sentido ‘teológico’ (a
‘mensagem’ de um autor deus), mas um espaço multidimensional em que uma
diversidade de escrituras, nenhuma delas original, funde-se e entra em conflito.
(BARTHES, 1977, Imagem music, text, p.
146).
Tal diversidade de
escrituras, apontadas por Barthes é mais do que uma simples articulação
linguística. Por um lado, como escreveu Ricoeur, o texto é algo que acontece a
partir de condições sociais específicas.
Como todo o ato de fala é
uma construção de mundo, a fala ou o texto é sempre mediado pela forma como o
falante vê e se posiciona fenomenologicamente em seu contexto. Há uma constante
fabricação de mundo nos atos de fala o que faz com que se perca o referencial
dos textos e que se possibilitem as diversas intertextualidades.
No texto que o filme
apresenta sob a forma de narrativa, está presente uma série de intertextos,
seja pela própria natureza dos atos de fala, como apontou Ricoeur, seja pela
intencionalidade do realizador de misturar diferentes textos, criando algo
novo. Foi o que aconteceu, e de certa forma continua a ocorrer, com o cinema de
gêneros do cinema de estúdios norte-americanos.
São mantidas determinadas
características em função das necessidades de uma nova condição social que
movimenta a realidade e os gostos do espectador, acaba por absorver
hibridizações constantes.
Os discursos construídos
pelos filmes são narrativas ficcionais; não têm a preocupação de serem fiéis a
quaisquer acontecimentos, personagens, contextos e/ou conhecimentos; seus
significados residem, principalmente, em contar histórias, sejam elas quais
forem; sua finalidade primeira é o entretenimento, sua narrativa atende a esse
fim e essa é a única premissa restritiva que, a princípio, se submete.
Outro caminho de
permeabilidade textual se dá através do dispositivo, que se divide em dois
caminhos: o primeiro pela técnica e mecânica do fazer cinema e a segunda pelas
suas possibilidades de exibição. Ambas colaboram para a percepção de novos
textos por parte do espectador.
Centrando na relação que se
cria entre a sucessão de fotogramas inscritos pela câmera, cabe afirmar que a
projeção – e esta seria a segunda fase da operação - restabelece sobre a tela, a
partir de imagens fixas e sucessivas, a continuidade do movimento e a sucessão
do tempo. Um primeiro ponto do dispositivo a ser abordado é justamente a
primeira fase de operação, que é a produção, a captação, ou o momento em que se
decompõe e se fixa o movimento encenado em fotogramas – imagens estáticas e
descontínuas. Na fase dos procedimentos de produção, que a exibição final do
filme oculta mais textos se constituem.
O filme acabado aponta para
uma suposta autoria que o próprio momento de produção, do fazer fílmico, já
contradiz. Pelo filme tomar forma através de diversos profissionais que, a
partir do seu modo de interpretarem o texto do filme e o próprio mundo em que
vivem, transformam a narrativa e impossibilitam um conceito pleno de autoria
absoluta.
Daqui que a relação
com a imagem cinematográfica se articule para o sujeito espectador através de
dois aspectos: como continuidade formal (a partir da negação das diferenças que
existem entre os fotogramas) e como continuidade narrativa do espaço fílmico.
(ZUNZUNEGUI, 2003, Pensar La imagen, p.
148).
Desses profissionais vêm
outros textos que permeariam o filme durante seu processo de produção. Ainda na
produção, percebem-se outras variáveis que modificam a percepção do espectador:
a história e a própria evolução técnica do cinema que modificam a forma do
espectador se relacionar com o filme.
Para voltar ao gênero de gângster, por exemplo, os filmes de
detetives dos anos 40, reconhecidos pelo nome de cinema noir, foram diretamente influenciado não só por um contexto, pela
literatura e pelos anseios dos espectadores, mas também se caracterizaram
visualmente pelo uso de luz e sombra contrastadas, influência dos técnicos
expressionistas alemães que fugiam da guerra para os EUA.
Importante lembrar que o
próprio expressionismo era um texto moldado pelas condições de vida do povo
alemão e que, no cinema americano, torna-se um intertexto imprescindível ao
cinema noir.
Se tal ligação é mais
associada a um saber técnico e a uma visão de mundo específica do povo alemão,
o que não faltam, contudo, são momentos na história do cinema em que o avanço
tecnológico modificou a linguagem e suas possibilidades, interferindo nos seus
textos: o som, a cor, a câmera portátil, a tecnologia digital são
aprimoramentos técnicos que trazem para o cinema novas possibilidades, fazendo
com que o cinema constantemente ofereça novas possibilidades imagéticas.
De todas essas variáveis que
transformaram o cinema, é válido voltar à questão dos textos que se escrevem
sobre os filmes e ressaltar a importância da própria mídia, em torno do cinema,
como um texto que interfere na recepção de um filme. À sugestão de Stam sobre o
espaço da crítica como um lugar diferenciado, deve ser acrescentado o espaço
jornalístico e publicitário.
Seus textos, independente de
sua qualidade ou não, no período de lançamento de um filme, seja em cinema, DVD
ou TV, modificam a expectativa que se tem com relação ao que irá se assistir. O
espectador, munido de diferentes discursos, vai ver o filme a partir de outros
textos anteriores que falam de formas diferentes, sobre o filme, interferindo
nele.
No jornalismo tanto o espaço
de uma crítica mais elaborada quanto uma crítica menos profunda, de
entretenimento, ou mesmo as publicações que veiculam matérias sobre a filmagem
ou sobre os bastidores da vida dos artistas (artifício recorrente desde o
início do cinema americano com o star-system),
criam uma relação meta textual, pois são, para Zunzunegui (2003, p.92),
“comentários que ligam um texto com outro”. Uma revista ou um jornal que
apresente notícias ou simples curiosidades sobre um filme, sobre seus
bastidores, reativa a percepção dos procedimentos, as marcas do fazer fílmico
que o filme apaga.
O espectador ao ler uma
matéria e posteriormente associá-la com a cena no momento da projeção, se
remete ao procedimento que sem a revista não teria como identificar. E tais
matérias são cada vez mais frequentes. A espetacularização dos modos,
tecnologia, custos, curiosidades e dificuldades dos filmes se transformaram no
tipo de leitura mais habitual e cotidiana sobre o cinema.
Zuzunegui (2003, p. 92)
aponta também a paratextualidade como outro espaço importante. Justamente o
espaço de publicidade, outdoors, trailers
e teasers, prolífera textos ou
“modelos de consumo do texto” que criam uma expectativa junto às matérias
jornalísticas, para que se veja o filme.
Se este, contudo, não
atender as altas expectativas proporcionadas por esses textos, o filme tende a
decepcionar seu público. Por outro lado, se a divulgação gera pouca expectativa,
mas o filme surpreende na bilheteria, um novo texto jornalístico é gerado e
talvez, a partir daí, surja outro filme como sequência.
Todas essas trocas
são relevantes para analisar o texto fílmico, que nunca está restrito apenas ao
conteúdo narrativo do filme: O conceito de dialogismo sugere que todo e
qualquer texto constitui uma interseção de superfícies textuais. Os textos são
todos tecidos de fórmulas anônimas inscritas na linguagem, variações dessas
fórmulas, citações conscientes e inconscientes, combinações e inversões de
outros textos. (STAM, 2003, Introdução à teoria do cinema, p. 225-226).
Ainda assim é necessário entender que o lugar para onde esses tecidos convergem
não é o filme, mas sim, o espectador. É ele, a partir de sua experiência e modo
de recepção que vai reunir todos esses textos e concretizar a experiência
fílmica. Essas diversas possibilidades de interferências no texto do filme
acontecem também na TV.
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