O termo pós-humano tem ganhado espaço nos meios intelectuais e acadêmicos nos últimos tempos, ele parece vir substituir, de certo modo, o já desgastado termo pós-moderno e passou a tornar-se uma constante nos cadernos de cultura, nas discussões filosóficas e socioculturais ditas de ponta.
Segundo Jair Ferreira dos Santos (2002:58), ele foi inventado pelo intelectual norte americano de ascendência egípcia Ihab Hassan em um ensaio publicado em 1977 na Geórgia Review intitulada Prometeus as Performer: Toward a Posthumanist Culture, o autor acreditava que esse neologismo poderia ser usado como mais uma “imagem do recorrente ódio do homem por si mesmo”.
O termo hibernou durante alguns anos e voltou fortalecido na década de 90, desta vez adotado por filósofos, cientistas e artistas ligados ao avanço tecnológico e às proposições de hibridização entre homem e máquina, carne e silício, no sentido de transposição da ontologia tradicional, dos limites físicos e culturais que definiram historicamente o conceito de humano.
Mas ele ainda é motivo de visões controversas, como a dos adeptos do movimento Extropy, que entre outras coisas acreditam na possibilidade de perpetuação infinita a partir do upload da consciência humana em um chip de computador, eles adotaram o termo como uma espécie de renovação do conceito Nietzchiano de Super Homem, ou seja, a superação absoluta de todos os valores humanos em um pretenso estágio superior de humanidade.
O Extropy Institute de Max More no início dos anos 90 foi fechado com o objetivo de unir-se a outras instituições transhumanistas e fortalecer o movimento em direção aos seus objetivos pós-humanos. A visão dos extropianos implica na adoção de uma nova ética, baseada na crença de que o corpo humano é um hardware em processo de obsolescência, portanto devemos buscar um novo hardware para “habitarmos”, com melhor desempenho e durabilidade.
Ray Kurzweil, um dos conselheiros do The Extropy e autor do livro The Age of Spiritual Machines – When Computers Exceed Human Intelligence (2000), afirma que as máquinas irão tomar consciência e substituir o homem dentro dos próximos 30 anos, essa tomada de consciência por parte das máquinas resultará numa reconfiguração planetária, talvez até no surgimento da nova espécie que irá nos substituir na dominação da Terra.
Como o homem evoluiu do australopitecus ao homo-sapiens biologicamente, desta vez está-se literalmente construindo a nova criatura que irá nos substituir nessa escala evolutiva algo como o humanimal-roboticus.
Em artigo com o sugestivo título de Ser Humano Versão 2.0, Kurzweil diz:
Nossa espécie já aumentou a ordem “natural” de nossas vidas por meio de nossa tecnologia: drogas, suplementos, peças de reposição para virtualmente todos os sistemas corporais e muitas outras invenções. Já temos equipamentos para substituir nossos joelhos, bacias, ombros, cotovelos, pulsos, maxilares, dentes, pele, artérias, veias, válvulas do coração, braços, pernas, pés e dedos. Sistemas para substituir órgãos mais complexos (por exemplo, nossos corações) começam a funcionar. Estamos aprendendo os princípios de operação do corpo e do cérebro humanos e logo poderemos projetar sistemas altamente superiores, que serão mais agradáveis, durarão mais e funcionarão melhor, sem serem suscetíveis a panes, doenças e envelhecimento (KURZWEIL, 2003, in caderno Mais! Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 23 de março de 2003).
Esta postura extremista dos extropianos gera posições controversas como o seu descaso à questão ecológica por não acreditarem mais no mundo orgânico, baseado no carbono, como única referência para a vida. A Artista Natasha Vita-More, presidente do extinto The Extropy Institute e autora do Manifesto da Arte Extropiana, desenvolve atualmente seu projeto de arte conceitual Primo Posthuman, uma proposta para um novo corpo pós-humano, utilizando uma visão prospectiva do avanço tecnológico como arcabouço para a idealização de seu projeto radical para o corpo do futuro.
Outros pesquisadores apresentam uma visão menos radical do conceito de pós-humano, como Katheryne Hayles, professora da Universidade da Califórnia e autora de How We Became Posthuman, Virtual Bodies in Cybernetics, Literature and Informatics (1999), onde analisa a nossa atual condição pós-humana como o resultado do fluxo de informações através das redes conectando homens e máquinas, como em um processo acelerado de cibernetização.
O sonho é uma versão do pós-humano que abrace as possibilidades das tecnologias da informação sem ser seduzida por fantasias de poder ilimitado e imortalidade descorporificada; que reconheça e celebre a finitude como uma condição do ser humano, e que entenda a vida humana como embebida em um mundo material de grande complexidade, mundo do qual dependemos para continuar sobrevivendo (HAYLES apud FELINTO, 2005, p. 114).
Ainda em 1985, Donna Haraway, em seu Manifesto Ciborgue (apud SILVA, 2000), apontava que nossa crescente conexão com todos os aparatos tecnológicos, da TV aos games, tornava-nos cyborgs, criaturas híbridas muito distintas de nossos antepassados. Ela antecipou o período de ruptura drástico que vivemos atualmente, nas palavras do gnosticista das novas mídias Erik Davis:
Quando você constata que hoje podemos destruir todo o planeta, nos clonarmos, considerar seriamente a eugenia genética, erradicar doenças comuns, alterar o clima, dizimar milhões de espécies, criar protointeligência com máquinas, forçar fótons a “diminuírem a sua velocidade”, etc, etc… a verdadeira questão se torna: será que o ser que pode fazer e contemplar tudo isto está realmente ligado ao milênio que a tudo precedeu? Ou há um ponto de ruptura, que justifica ser examinado mais de perto?(…) A condição humana já há muito não significa mais nada, justamente porque muitas das limitações que uma vez definiram esta condição, agora parecem estar prontas para o arrebatamento (DAVIS, 2004, Techgnosis - myth, magic and mysticism in the image of information. p. 342).
Garcia dedicou inclusive um capítulo de seu mais recente livro, Politizar as Novas Tecnologias: O Impacto Sócio Técnico da Informação Digital e Genética, às relações entre tecnologia e arte no panorama contemporâneo; assim como a conceituada semióloga Lucia Santaella intitulou um de seus recentes livros de Culturas e Artes do Pós-Humano: Da Cultura das Mídias à Cibercultura, e dedica boa parte dele a analisar as ditas “Artes do Pós-Humano”, citando nomes como Roy Ascott, Diana Domingues, Orlan, Gary Hill, Gilbertto Prado, Suzette Venturelli, Tânia Fraga e Eduardo Kac, artistas envolvidos com projetos nas áreas de realidade virtual, telepresença, cibermundos, caves, transe cibernético, transgênica, biorrobótica e nanoengenharia.
A obra desses artistas parece também dialogar com as proposições de alguns cientistas polêmicos como os já citados Ray Kurzweil e Hans Moravec, ambos os adeptos da teoria da possível tomada de consciência por parte dos computadores. Moravec é escritor de Robot: Mere Machine to Transcendent Mind (1999), e autor de uma teoria segundo a qual as máquinas evoluirão para a autoconsciência a partir do surgimento dos primeiros robôs multifuncionais.
Para ele o processo biológico que levou milhões de anos para produzir o homem levará apenas 30 anos para produzir a primeira máquina autoconsciente, é importante destacar que os robôs multifuncionais já começaram a pulular pelo mundo afora, principalmente no Japão.
Esses robôs repletos de dispositivos sensoriais começaram a ser vendido no ano 2000 como brinquedo, o exemplo maior são os cãezinhos AIBO. O matemático Vernon Vinge é autor de outras reflexões polêmicas no contexto da pós-humanidade, sendo criador da “Teoria da Singularidade”, segundo ele:
A aceleração do progresso tecnológico é uma questão central na história da humanidade. Estamos no limiar de uma mudança comparável ao surgimento da vida humana na Terra, com a criação iminente de entidades com inteligência maior que a humana. Desenvolvimentos que antes pensaríamos só ocorrer em “um milhão de anos”, se ocorressem, acontecerão neste século. Creia-se correto chamar este evento de singularidade. É o ponto em que uma nova realidade passará a governar o mundo (VINGE, 2003, True names: and the opening of the cyberspace frontier, p. 259).
Vinge propõe três hipóteses para a “singularidade”, na primeira delas a tecnologia produziria computadores avançados com uma inteligência sobre-humana; na segunda, as interfaces entre homem e máquina tornar-se-iam tão íntimas que vamos nos considerar superinteligentes; já na terceira hipótese, a biotecnologia proporcionaria a expansão de nosso intelecto humano.
Essas previsões parecem confirmar uma das observações dos ciberartistas Suzete Venturelli & Mario Maciel (2004) ao discorrer sobre suas investigações poéticas a respeito do pós-humano, onde destacam uma progressiva mecanização e eletrificação do humano paralela à crescente humanização e subjetivação da máquina.
Muitos teóricos conceituam o pós-humano como a emergência ontológica relacionada às proposições de hibridização entre homem e máquina, carne e silício, aos avanços gradativos da consciência através da conexão com dispositivos múltiplos e à manipulação gradativa do DNA humano que poderá resultar em mudanças drásticas na estrutura biológica da espécie.
Termos semelhantes também são usados com essa mesma intenção, Hans Moravec adotou o termo ex-humans, o artista e teórico inglês das redes telemáticas Roy Ascott fala de uma “era pós-biológica” vislumbrada por ele através dessa fusão entre carne e silício, do mundo seco do silício com o mundo úmido do carbono, e da expansão da consciência pela conexão em rede.
Assim como Derrick de Kerchkove acredita que a ligação planetária em rede cria uma mente expandida pela somatória das inteligências conectadas. O artista australiano Stelarc usa o conceito de “corpo obsoleto” para balizar suas obras estruturadas a partir da conexão com próteses robóticas e biológicas e dispositivos telemáticos de expansão da percepção.
A pesquisadora Lucia Santaella, que acredita que um dos grandes dilemas da noção contemporânea de ser humano está diretamente conectado às mudanças pelas quais o corpo humano está passando em direção a uma possível nova antropomorfia: O potencial para as combinações entre vida artificial, robótica, redes neurais e manipulação genética é tamanho que nos leva a pensar que estamos nos aproximando de um tempo em que a distinção entre vida natural e artificial não terá mais onde se balizar.
De fato, tudo parece indicar que muitas funções vitais serão replicáveis maquinicamente assim como muitas máquinas adquirirão qualidades vitais. O efeito conjunto de todos esses desenvolvimentos tem recebido o nome de pós-humanismo (SANTAELLA, 2003, Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, p. 199).
Com toda certeza o termo pós-humano ainda irá gerar muitas polêmicas, dezenas de teses serão escritas para tentar analisá-lo, dissecá-lo, reinventá-lo, e como sempre pouquíssimos serão os trabalhos sagazes a respeito dele.
Santanella diz que:
Como artista eu o adotei em minha obra como termo representativo da ruptura com a noção biológica de vida e de corpo baseado no carbono, das limitações impostas pelas características do DNA humano que definem nossa configuração física, e de consciência pelos limites impostos por nossa percepção do mundo estruturada sobre os cinco sentidos.
(SANTANELLA, 2003, Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, p. 223).
A maioria dos ciberartistas citados apresentam poéticas que refletem o conceitual ou metaforicamente sobre essas rupturas, e por esse motivo chamo seus trabalhos de “arte pós-humana”, considerando o termo como uma das categorias da ciberarte. A arte continua desempenhando o seu papel de força visionária capaz de produzir conhecimento regado de poesia e reflexões prospectivas.
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